Pedro Leopoldo (MG), 9 de novembro de 1940.
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Espírito Humberto de Campos |
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A última ceia
Reunidos os discípulos em companhia de
Jesus, no primeiro dia das festas
da Páscoa, como de outras
vezes, o Mestre partiu o
pão com a costumeira ternura. Seu olhar, contudo, embora não traísse
a serenidade de todos os momentos, apresentava misterioso fulgor, como se sua
alma, naquele instante, vibrasse ainda mais com os altos planos do Invisível.
Os companheiros comentavam com
simplicidade e alegria os sentimentos do povo, enquanto o Mestre meditava silencioso.
Em dado instante, tendo-se feito longa
pausa entre os amigos palradores, o Messias acentuou com firmeza
impressionante:
- Amados,
é chegada a hora em que se cumprirá a profecia da Escritura. Humilhado e
ferido, terei de ensinar em Jerusalém a necessidade do sacrifício próprio, para
que não triunfe apenas uma espécie de vitória, tão passageira quanto as
edificações do egoísmo ou do orgulho humanos. Os homens têm aplaudido, em
todos os tempos, as tribunas douradas, as marchas retumbantes dos exércitos
que se glorificaram com despojos sangrentos, os grandes ambiciosos que
dominaram à força o espírito inquieto das multidões; entretanto, eu vim de meu Pai para ensinar
como triunfam os que tombam no mundo, cumprindo um sagrado dever de amor,
como mensageiros de um mundo melhor, onde reinam o bem e a verdade.
Minha vitória é a dos que sabem ser derrotados entre os homens, para
triunfarem com Deus, na divina construção de suas obras, imolando-se, com
alegria, para a glória de uma vida maior.
Ante a resolução expressa naquelas
palavras firmes, os companheiros se entreolharam, ansiosos.
O Messias continuou:
- Não
vos perturbeis com as minhas afirmativas, porque, em verdade, um de vós outros
me há de trair!... As mãos, que eu acariciei, voltam-se agora contra mim.
Todavia, minha alma está pronta para execução dos desígnios de meu Pai.
A pequena assembleia fez-se
lívida. Com exceção de Judas, que entabulara negociações particulares com os
doutores do Templo, faltando apenas o ato do beijo, a fim de consumar-se a
sua defecção, ninguém poderia contar com as palavras amargas do Messias.
Penosa sensação de mal-estar se estabelecera entre todos. O filho de Iscariotes
fazia o possível por dissimular as suas angustiosas impressões, quando os
companheiros se dirigiam ao Cristo com perguntas angustiadas:
-
Quem será o traidor? – disse Filipe, com estranho brilho nos olhos.
- Serei
eu? – indagou André, ingenuamente.
- Mas,
afinal – objetou Tiago, filho de Alfeu, em voz alta -, onde está Deus que não conjura semelhante
perigo?
Jesus, que se mantivera em silêncio ante
as primeiras interrogações, ergueu o olhar para o filho de Cleofas e
advertiu:
-Tiago,
faze calar a voz de tua pouca confiança na sabedoria que nos rege os
destinos. Uma das maiores virtudes do discípulo do Evangelho é a de estar
sempre pronto ao chamado da Providência divina. Não importa onde e
como seja o testemunho de nossa fé. O essencial é revelarmos a nossa união com Deus, em
todas as circunstâncias. É indispensável não esquecer a nossa
condição de servos de Deus, para bem lhe atendermos ao chamado, nas horas de
tranquilidade ou de sofrimento.
A esse tempo, havendo-se calado
novamente o Messias, João interveio, perguntando:
- Senhor,
compreendo a vossa exortação e rogo ao pai a necessária fortaleza de ânimo;
mas por que motivo será justamente um dos vossos discípulos o traidor de
vossa causa? Já nos ensinastes que, para se eliminarem do mundo os
escândalos, outros escândalos se tornam necessários; porém, ainda não
pude atinar com a razão de um possível traidor, em nosso próprio colégio de
edificação e de amizade.
Jesus pousou no interlocutor os olhos
serenos e acentuou:
- Em
verdade, cumpre-me afirmar que não me será possível dizer-vos tudo agora;
entretanto, mais
tarde enviarei o Consolador, que vos esclarecerá em meu nome, como agora vos
falo em nome de meu Pai.
E, detendo-se um pouco a refletir,
continuou para o discípulo em particular:
- Ouve,
João: os desígnios de Deus, se são insondáveis, também são invariavelmente
justos e sábios. O escândalo desabrochará em nosso próprio círculo bem-amado,
mas servirá de lição a todos aqueles que vierem depois de nossos passos,
no divino serviço do Evangelho. Eles compreenderão que para atingirem a porta estreita da renúncia
redentora hão de encontrar, muitas vezes, o abandono, a ingratidão e o
desentendimento dos seres mais queridos. Isso revelará a
necessidade de cada qual firmar-se no seu caminho para Deus, por mais
espinhoso e sombrio que ele seja.
O Apóstolo impressionara-se vivamente
com as derradeiras palavras do Mestre e passou a meditar sobre seus ensinos.
As sensações de estranheza perduravam em
toda a assembleia. Jesus, então, levantou-se e, oferecendo a cada companheiro
um pedaço de pão, exclamou:
-
Tomai e comei! Este é o meu corpo.
Em seguida, servindo a todos de uma pequena
bilha de vinho, acrescentou:
- Bebei!
Porque este é o meu sangue, dentro do Novo Testamento, a confirmar as
verdades de Deus.
Os discípulos lhe acolheram a suave
recomendação, naturalmente surpreendidos, e Simão Pedro, sem dissimular a
sua incompreensão do símbolo, interrogou:
- Mestre,
que vem a ser isso?
- Amados
– disse Jesus, com emoção -, está
muito próximo o nosso último instante de trabalho em conjunto e quero
reiterar-vos as minhas recomendações de amor, feitas desde o primeiro dia do
apostolado. Este pão
significa o do banquete do Evangelho; este vinho é o sinal do espírito renovador dos
meus ensinamentos. Constituirão o símbolo de nossa comunhão
perene, no sagrado
idealismo do amor, com que operaremos no mundo até o último dia. Todos os que partilharem
conosco, através do tempo, desse pão eterno e desse vinho sagrado da alma,
terão o espírito
fecundado pela luz gloriosa do Reino de Deus, que representa o
objetivo santo dos nossos destinos.
Ponderando a intensidade do esforço a
ser empregado e aludindo
às multidões espirituais que se conservam sob a sua amorosa direção, fora dos
círculos da carne, nas esferas mais próximas da Terra, o Cristo
acrescentou:
- Imenso
é o trabalho da redenção, mesmo porque tenho outras ovelhas que não são deste aprisco;
mas o Reino nos espera com sua eternidade luminosa!...
Altamente tocados pelas exortações
solenes, porém, maravilhados ainda mais com as promessas daquele reinado
venturoso e sem-fim, que ainda não podiam compreender claramente, a
maioria dos discípulos começou a discutir as aspirações e conquistas do
futuro.
Enquanto Jesus se entretinha com João,
em observações afetuosas, os filhos de Alfeu examinavam com Tiago as
possíveis realizações dos tempos vindouros, antecipando opiniões sobre qual
dos companheiros poderia ser o maior de todos, quando chegasse o Reino com as
suas inauditas grandiosidades. Filipe afirmava a Simão Pedro que, depois
do triunfo, todos deveriam entrar em Nazaré para revelar aos doutores e aos
ricos da cidade a sua superioridade espiritual. Levi dirigia-se a Tomé
e lhe fazia sentir que, verificada a vitória, se lhes constituía uma
obrigação a marcha para o Templo ilustre, em que exigiriam seus poderes
supremos. Tadeu esclarecia que o seu intento era dominar os mais fortes
e impenitentes do mundo, para que aceitassem, de qualquer modo, a lição
de Jesus.
O Mestre interrompera a sua palestra
íntima com João, e os observava. As discussões iam acirradas. As
palavras “maior de todos” soavam insistentemente aos seus ouvidos.
Parecia que os componentes do sagrado colégio estavam na véspera da divisão
de uma conquista material e, como os triunfadores do mundo, cada qual
desejava a maior parte da presa. Com exceção de Judas, que se fechava num silêncio
sombrio, quase todos discutiam com veemência. Sentindo-lhes a incompreensão, o Mestre pareceu
contemplá-los com entristecida piedade.

Nesse instante, os apóstolos observaram
que Ele se erguia. Com espanto de todos, despiu a túnica singela e cingiu-se com uma toalha em
torno dos rins, à moda dos escravos mais íntimos, a serviço dos seus senhores.
E, como se fossem dispensáveis as palavras naquela hora decisiva de
exemplificação, tomou
de um vaso de água perfumada e, ajoelhando-se, começou a lavar os pés dos
discípulos. Ante o protesto geral em face daquele ato de suprema
humildade, Jesus repetiu o seu imorredouro ensinamento:
- Vós
me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque eu o sou. Se eu, Senhor e
Mestre, vos lavo os pés, deveis igualmente lavar os pés uns dos outros no
caminho da vida, porque no
Reino do bem e da Verdade, o maior será sempre aquele que se fez sinceramente
o menor de todos.
Livro: “Boa Nova”
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Uberaba (MG), 20 de janeiro de 1964
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Espírito Irmão X |
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Aprendizes
e adversários
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Casa de Pedro em Cafarnaum |
Jonathan, Jessé e Eliakim, funcionários
do Templo de Jerusalém, passando por Cafarnaum, procuraram Jesus no singelo
domicílio de Simão Pedro.
Recebidos pelo Senhor, entregaram-se, de
imediato, à conversação.
- Mestre
- disse o primeiro -, soubemos que a
tua palavra traz ao mundo as Boas Novas do Reino de Deus e, entusiasmados com
as tuas concepções, hipotecamos ao teu ministério o nosso aplauso irrestrito.
Aspiramos, Senhor, à posição de discípulos teus... Não obstante as
obrigações que nos prendem ao Sagrado Tabernáculo de Israel, anelamos
servir-te, aceitando-te as ideias e lições, com as quais seremos colunas
de tua causa na cidade eleita do povo escolhido... Contudo, antes de
solenizar nossos votos, desejamos ouvir-te quanto à conduta que nos compete à frente dos inimigos.
-
Messias, somos hostilizados por terríveis desafetos, no Santuário –
exclamou o segundo -,e, extasiados com
os teus ensinamentos, estimaríamos acolher-te a orientação.
- Filho
de Deus – pediu o terceiro -, ensina-nos
como agir...
Jesus meditou alguns instantes, e
respondeu:
- Primeiramente,
é justo considerar nossos
adversários como instrutores. O inimigo vê junto de nós a
sombra que o amigo não deseja ver e pode ajudar-nos a fazer mais luz no
caminho que nos é próprio. Cabe-nos, desse modo, tolerar-lhe as admoestações,
com nobreza e serenidade, tal qual o ferro, que após sofrer,
paciente, o calor da forja, ainda suporta os golpes do malho com dignidade
humilde, a fim de se adaptar à utilidade e à beleza.
Os visitantes entreolharam-se,
perplexos, e Jonathan retomou a palavra, perguntando:
- Senhor,
e se somos injuriados?
- Adotemos o perdão e o silêncio
– disse Jesus. – Muita gente que insulta é
vítima de perturbações e enfermidade.
- E
se formos perseguidos? -
indagou Jessé.
- Utilizemos a oração em favor
daqueles que nos afligem, para que não venhamos a cair no
escuro nível da ignorância a que se acolhem.
- Mestre,
e se nos baterem, esmurrarem? – interrogou Eliakim. – Que fazer se a violência nos avilta e
confunde?
- Ainda
assim - esclareceu o brando
interpelado -, a paz íntima deve ser nosso
asilo e o amor fraterno a nossa atitude, porquanto, quem procura
seviciar o próximo e dilacerá-lo está louco e merece compaixão.
- Senhor
- insistiu Jonathan -, que resposta oferecer, então, à maledicência,
à calúnia e à perversidade?
O Cristo sorriu e precisou:
- O
maledicente guarda consigo o infortúnio de descer à condição do verme que se
alimenta com o lixo do mundo, o caluniador traz no coração largas
doses de fel e veneno que lhe flagelam a vida, e o perverso tem a
infelicidade de cair nas armadilhas que tece para os outros. O perdão é a única resposta
que merecem, porque são bastante desditosos por si mesmos.
- E
que reação assumir perante os que perseguem? – inquiriu Jessé,
preocupado.
- Quem persegue os semelhantes
tem o espírito em densas trevas e mais se assemelha ao cego
desesperado que investe contra os fantasmas da própria imaginação, arrojando-se
ao fosso do sofrimento. Por esse motivo, o socorro espiritual é o melhor remédio para os que nos
atormentam...
- E
que punição reservar aos que nos ferem o corpo, assaltando-nos o brio?
– perguntou Eliakim, espantado. – Refiro-me
àqueles que nos vergastam a face e fazem sangrar o peito...
- Quem golpeia pela espada, pela
espada será golpeado também, até que reine o Amor Puro na Terra – explicou
o Mestre, sem pestanejar. – Quem se
rende às sugestões do crime é um doente perigoso que devemos corrigir com reclusão
e com o tratamento indispensável. O sangue não apaga o sangue e o
mal não retira o mal...
E, espraiando o olhar doce e lúcido
pelos circunstantes, continuou:
- É
imperioso saibamos amar
e educar os semelhantes com a força de nossas convicções e conhecimentos, a
fim de que o Reino de Deus se estenda no mundo... As Boas Novas de
Salvação esperam que o
santo ampare o pecador, que o são ajude ao enfermo, que a vítima auxilie o
verdugo...Para isso, é imprescindível que o perdão incondicional, com o
olvido de todas as ofensas, assegure a paz e a renovação de tudo...
Nesse ínterim, uma criança doente chorou
em alta voz num aposento contíguo.
O Mestre pediu alguns instantes de
espera e saiu para socorrê-la, mas, ao regressar, debalde buscou a presença dos
aprendizes fervorosos e entusiastas.
Na sala modesta de Pedro não havia
ninguém.
Livro: “Contos desta e doutra vida”
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